23 de janeiro de 2013

O primeiro Warhol









É uma notícia surpreendente: 300 desenhos inéditos de Andy Warhol foram descobertos pelo crítico de arte e curador alemão Daniel Blau. Apesar de serem os trabalhos mais antigos produzidos pelo Warhol, na época recém-formado em um curso de design, são desenhos sofisticados, que lembram o traço de mestres. À primeira vista, o observador poderia até pensar que se trata de estudos feitos por Matisse, ou quem sabe Picasso, Schiele, Klimt, Toulouse-Lautrec.

A coleção de desenhos – a maioria deles em grafite sobre papel, com 45,3 por 40,9cm e algum retoque de tinta ou aquarela – cobre a lacuna que existia sobre o período menos conhecido do trabalho do artista, que vai de seus primeiros trabalhos e sua formação numa escola técnica de desenho industrial em sua terra natal, Pittsburgh, até a primeira exposição individual que ele conseguiu realizar em Nova York, em meados da década de 1950.

O mais novo “tesouro” de Andy Warhol foi descoberto quase por acaso. De passagem por Nova York, em 2011, Daniel Blau visitou uma exposição na Andy Warhol Foundation for the Visual Arts e soube, através de um dos coordenadores da instituição, Vincent Fremont, que os trabalhos de inventário e catalogação do que Warhol produziu ainda não estavam concluídos, mesmo depois de tantos anos da morte do artista. Fremont, que foi um dos secretários pessoais de Warhol, revelou a Daniel Blau que ainda há um grande número de obras não avaliadas, além de várias séries de gravuras e outros projetos que ficaram inacabados. O galerista alemão, ávido por novidades, programou uma nova temporada em Nova York para investigar os inéditos no espólio de Warhol.






















Andy Warhol aos 21 anos, fotografado
no supermercado em Nova York, em 1950,
quando ainda assinava Andrew Warhola.
A ironia fica por conta da fixação explícita
de Warhol pelas garrafas de Coca-Cola,
pelas caixas de sabão Brillo pelas
latas de sopas Campbell's que, anos
depois, seriam reproduzidas em suas
célebres gravuras e pinturas.

Abaixo, três autorretratos retocados pelo
artista em 1956. Todas as imagens foram
extraídas do catálogo da exposição
From Silverpoint to Silver Screenque
reúne a coleção de desenhos que o jovem
Warhol fez na década de 1950, antes
da fama, e que permaneciam inéditos








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O garimpo não poderia ter resultado mais inesperado: entre os arquivos trancados por mais de 20 anos na sede da fundação, em Nova York, estavam os desenhos, cuidadosamente organizados em envelopes lacrados desde 1990, mas erroneamente etiquetados como “sem valor comercial”. Daniel Blau, que foi quem descobriu e identificou o tesouro, recebeu carta-branca da direção da Andy Warhol Foundation e não perdeu tempo nem dinheiro: organizou a publicação dos desenhos em um catálogo de luxo de 280 páginas e apresentou os originais inéditos na exposição “From Silverpoint to Silver Screen”, aberta ao público desde o último final de semana no Louisiana Museum of Modern Art, em Copenhagem, Dinamarca (veja no final desta página os links para o catálogo da exposição e para uma visita virtual ao museu).



Trabalhos sob encomenda



Warhol é uma lenda e ele próprio amava propagar as mistificações sobre sua biografia e sua trajetória. Filho de imigrantes tchecos, estudou desenho técnico e industrial no Carnegie Institute of Technology de Pittsburgh e, em 1949, aos 21 anos, recém-formado, resolve dar um passo arriscado: decide trocar Pittsburgh por Nova York, com a cara e a coragem. Mas, como ele gostava de repetir, sua sorte brilhou depois de um breve período de dificuldades. Ainda naquele ano de 1949, recebeu a primeira encomenda de uma ilustração para a “Glamour”, uma das revistas que representavam para o designer recém-formado todas as qualidades da sofisticação.











Uma certa aura de misticismo paira sobre esta primeira encomenda. Klaus Honnef, um dos biógrafos de Warhol, diz que o aspirante a artista teve a inspiração em um sonho e, em seguida, procurou a editora de arte da "Glamour" para mostrar um portfólio com seus melhores trabalhos. Aguardou na sala de espera o dia todo e só foi atendido no final da tarde. A editora, Tina Fredericks, olhou alguns dos desenhos, fez elogios, mas lamentou que nenhum deles servisse: ela precisava, com urgência, de ilustrações sobre sapatos. Na manhã seguinte, Warhol reapareceu muito cedo na redação com mais de 50 desenhos, ilustrações e aquarelas de sapatos, de todas as formas, cores, perspectivas. Foi imediatamente aceito. Uma das ilustrações foi publicada naquela semana e outras encomendas viriam, para as edições seguintes.

Parece até um trocadilho, bem ao gosto do principal expoente da Pop Art: “Glamour” foi sua porta de entrada no mundo das revistas e da publicidade. Naquele momento, o jovem artista abandonaria o nome de batismo, Andrew Warhola, e passou a assinar Andy Warhol, começando uma intensa produção de ilustrações sob encomenda para agências de publicidade e para revistas de prestígio como “Vogue”, “Look”, “Life”, “The New Yorker”, “Harper's Bazaar”. Cartazes, anúncios, pôsteres, capas de revista, de disco, de livros, ilustrações para crônicas e reportagens, layouts para embalagens, projetos de desenhos industriais para sapatos, cintos e acessórios, cosméticos, perfumaria – Warhol produzia tudo, com brilho, mas sua assinatura raramente aparecia nestes trabalhos.













Mesmo sem nenhum reconhecimento fora das agências e das redações das revistas, Warhol não para. Neste começo de carreira, durante o dia ele cumpre a maratona infinita de trabalhos sob encomenda. Mas, para compensar, à noite, em seu apartamento minúsculo – quase sempre compartilhado com amigos e com amigos de amigos para dividir os custos de aluguel – ele se dedicava à arte: aos desenhos sobre os mais variados temas e estudos para aquarela, aperfeiçoando o traço ao tentar reproduzir detalhes das imagens de famosos e de anônimos estampadas em jornais e revistas.


Ilustrador de revista


A quase totalidade dos trabalhos desta primeira fase do artista somente agora foram descobertos e revelam um outro Warhol: extremamente poético e inventivo no minimalismo do traço, ao contrário de seus trabalhos que criaram a tradição da Pop Art, nos quais ele investiria nas décadas seguintes, com a repetição à exaustão das gravuras apropriadas da publicidade e do cinema para experiências com policromia e sobreposições – em técnicas híbridas que fizeram dele uma celebridade internacional e um capítulo em destaque na História da Arte.













Separar a “arte-arte” dos trabalhos para publicidade e sob encomenda é uma prática que ele iria adotar durante toda a sua trajetória, desde estes primeiros tempos. Mesmo depois, nas décadas seguintes, no auge do sucesso, quando sua presença e assinatura funcionavam como grife em lances geniais de marketing e autopromoção, Warhol sempre manteria esta distinção: uma coisa era a arte, seu empenho nas experiências formais e de expressão em diversos suportes, artes plásticas, fotografia, cinema; outra coisa eram os trabalhos que ele produzia sob encomenda.

Como a maior parte de seus trabalhos nesta primeira fase foram publicados ou veiculados sem assinatura, se conhece muito pouco sobre este acervo e sobre o estilo adotado pelo primeiro Warhol – o que reforça a importância da coleção inédita descoberta por Daniel Blau. Entre biógrafos e historiadores, o mais frequente é marcar a trajetória da obra de Warhol a partir dos trabalhos reunidos em sua primeira exposição, em 1952, na Hugo Gallery de Nova York – com 50 desenhos baseados nos escritos de Truman Capote.





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Dos seus trabalhos publicados na imprensa, nesta época, sabe-se que a maioria são ilustrações de sapatos, não por acaso tema de sua segunda exposição individual, “Golden Shoes”, apresentada em Nova York com prêmios e distinções em 1956, na Madison Avenue. “From Silverpoint to Silver Screen”, a coleção de desenhos inéditos descoberta por Daniel Blau, estende a trajetória aos primeiros trabalhos e lança luzes sobre a evolução da técnica e as principais influências do jovem Warhol, especialmente Toulouse-Lautrec e outros mestres da Belle Époque.

São muitos estudos anatômicos do torso masculino, retratos de mulheres (quase sempre inspirados em senhoras da alta sociedade que frequentavam as colunas sociais), rostos de crianças e cupidos barrocos, mãos em muitos ângulos e variações de perspectivas, beijos de jovens casais, estrelas de cinema, pessoas anônimas a dançar. Na imensa maioria dos desenhos, o elemento humano é o centro da atenção, com raras exceções, quase sempre dedicadas a um dos fetiches diletos de mister Warhol: sapatos.



  






Moda, fetiche, sapatos


O fetiche e sua mística: na infância o pequeno Andrew Warhola, tímido e de saúde frágil, era um leitor apaixonado de histórias em quadrinhos – especialmente “Dick Tracy” e “Superman” – e passava horas a copiar das revistas os sapatos de seus heróis. Mais tarde, adolescente, substituiria os heróis pelas colagens com sapatos e rostos recortados das estrelas de cinema.

Seu primeiro trabalho publicado, em 1949, também foi uma ilustração de sapatos. Mais: seu primeiro projeto de um produto industrial foi para uma fábrica de sapatos e a maioria dos catálogos sobre a arte de Warhol costuma abrir a cronologia de suas telas e serigrafias com as imagens de sapatos. Com frequência, são duas as imagens (de sapatos) apontadas como inaugurais da trajetória do artista: “À la Recherche du Shoe Perdu” (A procura do sapato perdido), aquarela negociada em 1955 para ilustrar a capa do livro de Ralph Pomeroy, e “Judy Garland” (1956), colagem em forma de bota dourada, cravejada de arabescos, com técnicas de litografia e bico de pena.











Desenhos inéditos de Andy Warhol da década
de 1950: 
abaixo, Two male heads face to face
(Duas cabeças 
masculinas face a face),
desenho em grafite sobre 
papel de 1952;
Two heads (Duas cabeças), desenho em

esferográfica preta sobre papel de 1953
Excited male torso (Torso masculino
excitado), 
desenho a caneta de 1957












  

Na apresentação ao catálogo que reúne a íntegra dos desenhos inéditos, Daniel Blau enumera alguns aspectos técnicos que a nova coleção acrescenta à obra de Warhol e reconstitui a surpresa e a alegria que experimentou ao constatar que a coleção era rigorosamente inédita, descrevendo o passo a passo que o levou à descoberta.

"Toda a coleção estava esquecida em um envelope de papel e eu, realmente, não entendo como até agora estes desenhos incríveis não haviam sido descobertos em nenhuma triagem”, confessa. “Desde a morte de Warhol, em 1987, muitas equipes de especialistas catalogaram mais de uma vez o acervo, mapearam o paradeiro das principais obras, dispersas em museus e coleções particulares no mundo inteiro, mas ainda assim um tesouro como este estava escondido, esquecido há tantos anos num labirinto de armários, gavetas e depósitos fechados que Warhol gostava de manter em segredo”.











Warhol, o artista profissional, Warhol e suas mistificações, Warhol e suas surpresas. A nova coleção de desenhos confirma a complexidade de sua obra, sem nenhuma dúvida o ponto mais alto da Pop Art, com uma influência que continua perdurando, tanto na arte quanto na publicidade, na TV, nos videoclipes, no cinema, na internet, no desenho industrial. Para o público em geral, acostumado a associar o nome de Andy Warhol às imagens fauvistas do rosto de Marilyn e de outras estrelas, às simpáticas latas de sopa Campbell ou às bananas psicodélicas criadas para ilustrar os discos do Velvet Underground, pode ser difícil identificar o traço do artista nos desenhos minimalistas da coleção descoberta por Daniel Blau.

Contudo, estes primeiros desenhos do artista quando jovem também sinalizam claramente um confronto: ao contrário da tendência da maioria e dos grandes artistas em evidência naquela época, entre eles Jackson Pollock, Willem de Kooning, Mark Rothko – todos adeptos e militantes ferrenhos do Expressionismo Abstrato – o jovem Warhol aposta no retorno à figuração e às imagens recortadas da mídia, publicidade, imprensa, cinema. Estava na contramão, em um movimento que poucos arriscariam naquele momento. Warhol bancou a aposta e se posicionou na origem de um novo capítulo na História da Arte.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O primeiro Warhol. In: ____. Blog Semióticas, 23 de janeiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/o-primeiro-warhol.html (acessado em .../.../…).












12 comentários:

  1. Uau... Soberbo, José. E muito lindo. Esse Andy Warhol... Semióticas simplesmente um show, como sempre. Vale por uma aula deliciosa, aliás, por um curso inteiro. Beijos mil.

    Simone Marques

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  2. Fantástico. Tenho acompanhado todos os seus posts nos últimos dois meses e estou cada vez mais impressionado. Seu blog está cada vez melhor e esta página sobre Warhol está um escândalo. Palma de ouro!

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  3. Parabéns pelo blog, excelente, e por matérias tão belas e inteligentes como este perfil sobre Andy Warhol. Vendo as matérias do seu blog dá vergonha do que encontro atualmente nos jornais e revistas. Virei seu fã e seguidor convicto deste Semióticas.

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  4. TRABALHO , JA COM ARES DE PERFEIÇAO...
    COM CERTEZA, MUITO MAIS DOQUE 15 MINUTOS DE FAMA...
    E SIM ETERNAMENTE CRIADOR...

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  5. Carlos Eduardo Scaffidi9 de abril de 2013 às 16:07

    Tem coisas que fazem a gente pensar, querendo ou não. Estas costumam ser as melhores. Seu blog é assim. Um espetáculo porque é bonito e muito inteligente e porque provoca pensamentos. Muitos parabéns!!!

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  6. SENSACIONAL!!! 2013 quase acabando e Warhol continua anos luz à frente... Parabéns Zé, esse blog vale ouro!!! :)

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  7. Semióticas é o melhor blog que conheço. Show. Parabéns, parabéns!

    Carlos William

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  8. Muito bom mesmo. Seu blog é sempre um espetáculo. Parabéns. Virei leitor de carteirinha, quase sócio. Sou muito grato pelo que aprendo em cada visita.

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  9. Um espetáculo essa sua aula sobre os primeiros passos do grande Warhol. Estou encantada. Parabéns pela qualidade de tudo o que estou encontrando aqui. Semióticas é show!

    Aline Borges

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  10. Uma surpresa. Andy Warhol é uma figura surpreendente. E o blog acaba de confirmar essa percepção.
    Amei saber que 4era fissurado em sapatos e que possuía aquela premência que detectei em Dali, uma urgência em produzir Arte (Dali,no caso, era fustigado por Gala, que não lhe dava moleza) .
    Riqueza de conteúdo. Sou-lhe grata.

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  11. Alessandro Tridapalli17 de agosto de 2020 às 10:27

    Imagens lindas demais e seu texto como sempre completo, perfeito. Aprendi muito sobre o incrível Andy Warhol. Parabéns de novo porque tudo é excelente neste Blog Semióticas, tudo de alto nível. Cada visita que faço aqui eu saio mais feliz e com mais conteúdo. ShoW!

    Alessandro Tridapalli

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  12. Achei um luxo essa postagem e tudo mais nesse blog Semióticas.
    Aprendi muito, amei tudo e vou ter que voltar muitas vezes.
    Parabéns e muito obrigado por compartilhar.

    Domingos Messias

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